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COVID-19 e operações de fusões e aquisições (M&A): reflexos na due diligence e cláusula MAC

Os contratos são a veste jurídica de operações econômicas, para tomar emprestada a consagrada ideia de E. Roppo

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COVID-19 e operações de fusões e aquisições (M&A): reflexos na due diligence e cláusula MAC

Raphael Andrade, Wanessa Santana Oliveira, Felipe Ferreira


Os contratos são a veste jurídica de operações econômicas, para tomar emprestada a consagrada ideia de E. Roppo[1]. Sobretudo nos contratos de longa duração e natureza relacional, é bastante evidente a função de alocar riscos[2], em regra assinalando tal ou qual risco à parte que se revelar mais apta a suportá-lo, exigindo, para tanto, um menor prêmio (o superior risk bearer)[3].


Assumindo os contratos como mecanismos de alocação de riscos, surge uma preocupação dos agentes econômicos, principalmente em transações comerciais complexas, como as operações de fusões e aquisições de sociedades empresárias (M&A), em assegurar uma proteção em face de eventos adversos que possam afetar os negócios.


Nessa linha, importou-se da prática anglo-saxã, as cláusulas de efeito material adverso (material adverse change ou MAC), que são utilizadas para atribuir a um determinado contratante os riscos (e seus reflexos) relacionados a eventos que imprimam consequências adversas do ponto de vista negocial ou econômico, transcorridos em um determinado período de tempo. Usualmente, tal período é compreendido entre, de um lado, o levantamento do balanço-base da sociedade e/ou a celebração dos contratos definitivos (signing) e, de outro, o efetivo fechamento e liquidação da transação (closing).


A racionalidade aqui subjacente é a de que a definição do preço e das demais condições para a realização da transação é feita com base em determinadas premissas que, caso alteradas substancialmente (ou seja, de forma material), podem influenciar na vontade das partes em concluir o negócio em seus termos originais.


Do ponto de vista prático, as cláusulas MAC permitem, em regra, ao comprador (i) terminar o contrato e não proceder com o fechamento da transação, com ou sem indenização ao vendedor; ou (ii) demandar um ajuste no preço ou em outras bases objetivas do negócio, caso determinados eventos alterem prejudicialmente as condições econômico-financeiras do ativo em questão. Em virtude das gravosas consequências, a delimitação das hipóteses a ensejarem a aplicação da cláusula MAC ganha bastante relevância ao longo das negociações de M&A.


A partir de uma análise da prática norte-americana, verifica-se que houve grande difusão das cláusulas MAC em face de uma série de acontecimentos que abalaram a economia estadunidense nas últimas décadas, como os ataques terroristas ocorridos em 2001 e a crise do subprime em 2007-2008[4]. Com a recorrente utilização dessa ferramenta, surgiram também conflitos, que instaram os Tribunais norte-americanos a se manifestarem repetidamente a respeito da delimitação de eventos causadores (triggers) de efeitos materiais adversos.


Assim, os precedentes judiciais (grosso modo, a “jurisprudência”) são fartos em matéria de disputas societárias e, com segurança, podem servir de baliza e bússola para o desenho dos contratos de longa duração. Tais precedentes são especialmente relevantes dado que a delimitação das hipóteses de incidência da cláusula MAC, por vezes, é construída de forma mais genérica[5], havendo amplo espaço à interpretação, especialmente considerando a característica de incompletude, ínsita dos contratos de longa duração.


A tradição brasileira é, neste aspecto, diferente, e os documentos de uma transação de M&A objetivam uma definição mais completa e minuciosa das hipóteses em que o comprador pode exercer o direito decorrente da cláusula MAC. Usualmente, busca-se definir balizadores objetivos associados ao percentual de faturamento, despesas, lucro ou outros índices financeiros aplicáveis ao negócio ao invés de uma linguagem mais genérica e que convide à ampla interpretação.


Pois bem, como amplamente divulgado, o surto recente do coronavírus (COVID-19) tem causado impactos relevantes no mundo dos negócios, com a Organização Mundial da Sáude (OMS) tendo declarado situação de pandemia global na última quarta-feira (11).

De acordo com o Situation Report nº 54, emitido pela mesma organização, no último dia 15, até tal data, 142.539 pessoas haviam sido diagnosticadas ao redor do mundo com o vírus, das quais 81.021 encontram-se na China e 61.518 distribuídas em 135 outros países ou territórios.


Na tentativa de amenizar os impactos negativos na economia, os Bancos Centrais e autoridades monetárias de vários países têm se mobilizado e implementado medidas de estímulo, como cortes nas taxas de juros, prorrogações nas datas para pagamentos de tributos e recompra de ativos. Os principais índices do mercado financeiro mundial seguem em queda acentuada. Bolsas interromperam negociações temporariamente, competições esportivas e grandes eventos estão sendo cancelados, bem como estão sendo impostas proibições a aglomerações de pessoas e à visitação de locais turísticos.

Na tentativa de amenizar os impactos negativos na economia, os Bancos Centrais e autoridades monetárias de vários países têm se mobilizado e implementado medidas de estímulo, como cortes nas taxas de juros, prorrogações nas datas para pagamentos de tributos e recompra de ativos. Os principais índices do mercado financeiro mundial seguem em queda acentuada. Bolsas interromperam negociações temporariamente, competições esportivas e grandes eventos estão sendo cancelados, bem como estão sendo impostas proibições a aglomerações de pessoas e à visitação de locais turísticos.





                                       Source: Yahoo Finance


Os efeitos do vírus já podem ser sentidos na economia real, com redução no consumo e interrupção em cadeias de fornecimento inteiras, afetando também as projeções de crescimento do produto interno bruto (PIB) brasileiro.

O nível da atividade do mercado de fusões e aquisições, naturalmente, deve ser impactado pela incerteza lançada pelo rápido avanço do COVID-19, que impõe um compasso de maior segurança e menor apetite para a realização de negócios. Dentre outras razões, muitos dos compradores, sejam estratégicos ou investidores financeiros (fundos de private equity, por exemplo), são listados em bolsa e estão sofrendo com o forte movimento de venda generalizada[6].

Nesse contexto, é bastante provável que, para operações que estejam em curso (pre-signing), haja negociação entre as partes envolvidas acerca da inclusão da disseminação do COVID-19 (e dos efeitos daí decorrentes) como uma hipótese de disparo da cláusula MAC, a permitir que o comprador possa renegociar as bases do negócio ou abandonar a transação, sem que lhe possa ser imputada qualquer penalidade. O principal argumento a sustentar tal posição seria de que o potencial impacto do vírus não está claro até o momento (é, portanto, imprevisível), e os danos, ainda que de curto prazo, podem afetar substancialmente a cadeia de produção em que está inserido o ativo target, bem como as características econômico-financeiras que orientam a formação do preço.

Por outro lado, é possível que vendedores argumentem contrariamente à inclusão dessa hipótese, com base na ideia de que o avanço do COVID-19, além de já ser fato conhecido das partes à época da negociação (permitindo, portanto, a sua precificação), somente teria a capacidade de afetar os resultados do negócio no curto prazo, de forma temporária, não alterando os fundamentos substanciais que justificam a realização da operação.

Uma solução intermediária, que já começa a ser ventilada nos contratos de M&A, categoriza como efeito adverso material um evento originado do avanço do COVID-19 que impacte a sociedade alvo de maneira desproporcional às outras sociedades da mesma indústria, ou que afete especificamente determinados contratos ou negócios celebrados pela sociedade e que sejam especialmente relevantes para a formação do preço.

Os exemplos já aparecem: como reporta o Pitchbook, a aquisição da E-Trade pelo Morgan Stanley, assinada em fevereiro deste ano, incluiu, nos documentos da transação, a exclusão expressa do coronavírus como hipótese de aplicação da cláusula MAC, evitando a renegociação de um acordo de US$13bi. O New York Post, a seu turno, dá conta que a aquisição do Caesars Entertainment pela Eldorado Resorts, a maior transação do setor de casinos no ano, em valor superior a US$17.3bi, pode ser afetada negativamente pelo COVID-19 em função dos impactos que o vírus gera sobre o setor de turismo.

Caso não haja previsão específica, mas apenas genérica, a discussão se torna interessante. Nos Estados Unidos, o precedente de maior relevo na análise de cláusulas MAC é o recente caso Akorn v. Fresenius, julgado pela Delaware Chancery Court em 2018, de onde se pode concluir que, para que um evento constitua um efeito material adverso, ele (i) deve ser significante; (ii) não pode, razoavelmente, ter sido previsto pelas partes à época da celebração do contrato de aquisição; e (iii) não pode ser temporário, representando um impacto de longo prazo ou permanente.

Outra opção, naturalmente não excludente, é intensificar os processos de auditoria (due diligence), enfatizando a compreensão de como a disseminação do vírus - e as consequências que daí decorrem - podem afetar a receita ou outros indicadores financeiros do ativo, por meio da análise, por exemplo:

(i) da estrutura da cadeia de produção, da concentração ou dependência de determinados fornecedores e a localização geográfica deles, bem como da elasticidade da demanda por seus produtos ou serviços e a reação do mercado consumidor aos choques que vieram e, eventualmente, ainda virão;

(ii) da existência de apólices de seguro e a extensão das coberturas aplicáveis, verificando a inclusão de situações de interrupção de negócios;

(iii) da existência, conteúdo e efetividade de planos de gestão de crise a serem implementados pela gestão da sociedade alvo, incluindo as formas de tratamento de colaboradores potencial ou efetivamente contaminados, com vistas à minimização dos efeitos da disseminação do vírus nos negócios ordinários;

(iv) do cumprimento, pela sociedade, das normativas de saúde expedidas pelas autoridades governamentais, conforme aplicável;

(v) da estrutura de capital da sociedade alvo, com vistas, dentre outros, à identificação de sua alavancagem, e os potenciais efeitos causados pelo avanço do COVID-19 em termos de queda de receita e capacidade de serviço da dívida; e

(vi) da existência, nos contratos dos quais a sociedade alvo é parte, de previsões que permitam, a ela ou à sua respectiva contraparte, terminar o contrato em decorrência da disseminação do vírus ou de seus efeitos (cláusulas MAC ou semelhantes).

Como o resultado pode sugerir um ajuste prévio no preço (valuation) ou até mesmo sinalizar para a não realização da transação, é indicado que os vendedores se preparem com antecedência a respeito dos pontos acima, inclusive por tratarem de discussões que, para muitos deles, são incomuns ou com as quais não estão familiarizados. Além disso, eventual suspensão de expediente em determinadas repartições e a utilização de trabalho remoto para evitar a disseminação do vírus podem apresentar dificuldades adicionais à realização do processo de auditoria, superadas, em alguma medida, pela prática comum da utilização de data rooms virtuais, sem prejuízo da necessidade de informatização de certos processos e do cuidado com a segurança dos dados compartilhados.

De tudo, nota-se que a incerteza generalizada causada pelo COVID-19 apresenta, de fato, problemas para a indústria de M&A, que somente poderão ser avaliados integralmente no futuro. O que se pode dizer para o momento é que há um agravamento na assimetria de informação entre as partes, que contribui para a criação de um ponto cego. Como não se sabe, até agora, se os efeitos da pandemia serão duradouros ou afetarão os resultados apenas no curto prazo, os compradores se questionam se estariam pagando um preço excessivo pelo ativo, enquanto os vendedores se questionam se, de fato, o desconto eventualmente aplicado traduz o (seu) preço “justo”.

Certamente, outras tantas ferramentas já amplamente utilizadas poderão e serão ajustadas pelos agentes econômicos para lidar com as consequências postas pelo avanço do COVID-19, tais como as declarações e garantias, cláusulas de ajuste de preço, mecânicas de pagamento que atrelem a definição do preço final à performance pós-fechamento e data-limite (drop-dead ou long stop date), bem como a utilização de um pacote de garantias robusto.

A ver, então, como o mercado se ajustará ao cenário que está posto.

[1]
Cf. ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.

[2]Cf. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 2a ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 145; TRIANTIS, George G. Contractual allocations of unknown risks: a critique of the doctrine of commercial impracticability. The University of Toronto Law Journal, v. 42, nº 4, 1992, p. 454.

[3] Cf. ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato. Coimbra: Almedina, 2007, pp. 298-299.

[4]WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel de; WAISBERG, Ivo. Fusões, Incorporações e Aquisições - Aspectos Societários, Contratuais e Regulatórios. In: WARDE JR., Walfrido Jorge Warde. Fusão, Cisão, Incorporação e Temas Correlatos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 56.

[5]Exemplo disso é a inclusão, na definição de efeito material adverso, de eventos com relação aos quais “se pode razoavelmente esperar que resultem em um efeito material adverso”.

[6]Como exemplos de fundos de private equity globais listados em bolsa e que perderam substancial valor de mercado nos últimos dias: Apollo Global Management (NYSE: APO), cujas ações caíram 15,6%, Blackstone (NYSE: BX), com uma perda de 13,1%, The Carlyle Group (Nasdaq: CG), com 11,9% de perda, e KKR (NYSE: KKR), amargando 11,5% de queda, com dados de segunda-feira, 09/03/2020.

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